Prefácio
Por um lado, acredito que a teoria musical não deve ser considerada um domínio do conhecimento humano de segunda categoria, mais simples ou menos importante que, por exemplo, a matemática, a arquitetura, a engenharia ou a medicina. Por outro, também não deve ser apresentada de um modo tão complexo, ambíguo ou inacessível, que se torne apenas destinada aos mais estudiosos ou àqueles que podem despender de muito tempo para a sua aprendizagem. O estudo teórico da música aproxima os domínios da ciência e da arte, da anatomia e da técnica, da estética e da cultura entre povos, pelo que a sua compreensão só poderá ser benéfica e possibilitar o aumento da própria expressão artística do Homem.
Existem, e sempre existiram, excelentes músicos que desconhecem os detalhes teóricos da música. Verifica-se, na prática, que para fazer a arte é apenas necessário conhecer, de modo empírico, as suas características fundamentais: ritmo, melodia e harmonia. Com tenacidade, sensibilidade e expressão artística, muitos músicos dispensam a teoria e acreditam ser desnecessário conhecer os aspetos teóricos. Pessoalmente, não encontro nenhum motivo para discordar. Poderá, então, colocar-se a questão: conhecer teoricamente como funciona a música poderá diminuir a nossa estima pela arte? Para chegar à resposta, que acredito ser única para cada leitor, gostaria de desenhar um cenário. Para pilotar de um modo extraordinariamente competente um avião, sabemos que o piloto não precisa de saber como este funciona internamente, ao ínfimo detalhe de engenharia. Mas se souber, fará dele um pior piloto? Irá condicionar o seu desempenho enquanto piloto ou diminuir o seu gosto de voar?
Sobre o tema da teoria da música, e da própria música como expressão artística, existe um quase incontável número de livros de referência que abordam, com mais ou menos detalhe, um ou outro tema apresentado neste livro. Poderá não existir assim tanta literatura em português. Embora existam excelentes livros que aprofundam exaustivamente um ou outro aspeto específico, acredito ser necessário aumentá-los em número e qualidade. Esse é um dos motivos essenciais que deram origem a este livro, escrito nesta língua.
O outro motivo deve-se à minha própria experiência enquanto músico. Por mais tempo que passe, e por mais experiência que adquira, sinto-me sempre um aprendiz. Em diálogo com outros músicos, sinto que não existe assim tanta compreensão de como a música funciona, quer entre eles, quer comigo próprio. Por exemplo, o de saber com toda a clareza que técnicas existem, que cadências ou cores se encontram disponíveis na paleta e que podem ser usadas para a expressão artística. Existir uma linguagem comum, compreendida por todos, independentemente da abordagem mais clássica ou mais moderna que se tenha relativamente à arte, facilita tanto a transmissão como a partilha do conhecimento.
Questões de tom, não musical, mas sim de narrativa, surgiram logo aquando a escrita das primeiras frases. Como elaborar um livro moderno, com base no caminho percorrido pela humanidade na compreensão desta arte, aliando de um modo harmonioso abordagens clássicas e contemporâneas? Como proporcionar uma visão global, mas tendo simultaneamente em mente, o nível de detalhe adequado para a compreensão de um determinado aspeto da música? Como conciliar aspetos físicos e objetivos relativos a som, acústica ou física com sentimentos subjetivos e experiências intimamente pessoais como tensão, repouso, alegria ou melancolia? Que palavras escolher para fazer corresponder a prática comum com a teoria? Que palavras usar e que narrativa formar para que o seu conteúdo traga clareza, e não dúvida? O que incluir e o que deixar de fora? Se os conceitos forem demasiado simples, não despertará o interesse e não trará valor, mas se forem demasiado complicados também poderão dificultar a compreensão e irão inibir o progresso. Em todos os momentos durante a escrita deste livro estes aspetos foram considerados.
Embora o livro esteja organizado para ser lido sequencialmente, pois os temas são apresentados do mais amplo para o mais específico, e os assuntos abordados num determinado capítulo tenham por base conceitos apresentados anteriormente, este pode ser usado como uma referência pontual. O leitor deve escolher o modo como o prefere consultar, tendo por princípio que se ler um determinado conceito que se baseia em conhecimento anterior, deverá consultar os capítulos anteriores para melhor compreensão dos fundamentos.
Apesar de milhares de horas tenham sido colocadas neste livro, este não substitui, nem remotamente, a necessidade de se ter um contacto permanente com o instrumento: sentir o seu peso, a textura dos seus materiais, a temperatura e o contacto entre ele e o nosso corpo. Também não substitui o treino auditivo, o sentido crítico ou a estética. Também não elimina a necessidade de ter um mentor que percorra esta viagem connosco, avisando e informando dos perigos de conceitos incorretamente apreendidos ou técnicas mal-executadas. Este é um livro cujo mérito é o de complementar e aumentar o conhecimento relativo à arte da música, mas que usado isoladamente terá uma utilidade limitada.
Este é também o livro que eu gostaria de ter lido, e de ter mantido por perto quando, por volta dos 33 anos, recomecei a estudar música. Embora a minha curiosidade e encanto por música comece aos 6 anos, idade com que comecei a estudar solfejo, teoria e órgão, durante a adolescência dei início a uma guerra com a música que só alguns anos mais tarde fui capaz de terminar. Quando recomecei a estudar com profundidade os aspetos teóricos da música é que entendi que só estava a ver o topo do icebergue; agora sim, temos trabalho para fazer!
Gostaria, finalmente, que este livro fosse simultaneamente uma referência e uma ponte entre a teoria e a expressão artística, estimulante tanto para o músico ouvinte como para o praticante. Por todas estas razões, gostaria que este meu e nosso trabalho fosse o início, ou o consolidar, de uma viagem interminável pela arte da música. Boa viagem!